Passagens canceladas, uma escolta militar, duas travessias do Atlântico e 34 horas de viagem. Esses foram os custos — físico e psicológico — para sair da Venezuela para voltar para a Argentina, no último fim de semana, após as eleições presidenciais.
Nunca imaginei que ir embora da Venezuela seria tão complicado. Meu visto, que só valia pelos dias autorizados pelo governo para a cobertura dos enviados especiais, já estava por vencer e o ministério da Comunicação avisou: não iria renovar para nenhum jornalista que foi ao país cobrir o processo eleitoral.
Desde que a relação entre o governo de Nicolás Maduro e outros países da região que questionaram os resultados eleitorais começou a azedar, nossa saída do país começou a ficar difícil pela suspensão em série de voos.
Minha passagem de volta, via Panamá, comprada desde maio, foi cancelada dias depois de o governo de Nicolás Maduro suspender as operações aéreas com o país. A medida foi uma resposta à postura do presidente panamenho, José Raúl Mulino, que acusou Caracas de não respeitar a vontade popular.
Para contornar a situação, a CNN decidiu comprar uma nova passagem de volta para Buenos Aires, com outra companhia aérea, desta vez com escala em Lima. Qual minha surpresa quando, dias depois, fomos notificados de que este voo também tinha sido cancelado.
De acordo com a empresa que operava o voo, “a autoridade aeronáutica venezuelana determinou a suspensão temporária de todos os voos entre o Peru e a Venezuela entre 31 de julho e 31 de agosto”.
O governo Maduro rompeu relações diplomáticas com o Peru depois que o chanceler do país anunciou o reconhecimento do ex-candidato opositor Edmundo González como novo presidente venezuelano, em direta contestação à proclamação, pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE), da reeleição de Maduro.
“Ai, socorro, Deus”, escreveu a gerente de jornalismo da TV, diante do novo cancelamento, antes de empreender, com sua equipe, uma árdua busca por alternativas para que eu deixasse a Venezuela antes do vencimento do visto.
Diante das dificuldades, chegamos a considerar a volta por terra: com um voo de Caracas a Puerto Ordaz, no estado venezuelano de Bolívar, indo depois em uma viagem de cerca de dez horas por terra até a cidade de Santa Elena de Uairén, de onde atravessaríamos a fronteira para Pacaraima (Roraima).
Lembrei-me de 2014, quando morava na Venezuela e decidi me mudar novamente para o Brasil, e uma das alternativas que considerei para ir embora foi justamente por terra. Na época, diversas companhias aéreas, que não conseguiam repatriar seu lucro para as matrizes — devido ao controle do acesso a dólares pelo governo Maduro — decidiram abandonar a Venezuela.
Dez anos depois, eu estava lidando com uma nova crise aérea e com a possibilidade de ter que deixar o país por terra. Porém, alertas sobre riscos do trajeto nas estradas venezuelanas até o Brasil, que poderiam ser agravados no atual contexto de tensão do país, nos fizeram repensar a estratégia. Mas, sem opções de voos, como sair da Venezuela?
Soube de alguns colegas jornalistas que queriam voltar da Venezuela para o Brasil e tiveram que fazer escala na Turquia. Para ir para a Argentina, a única opção que encontramos, após buscas infrutíferas em que não aparecia nenhuma opção de passagem, foi indo a Madri.
E olha que poderia ser pior: inicialmente a única opção que apareceu foi um trajeto Caracas – Madri – Lisboa – Madri – Buenos Aires, que deixou todos os envolvidos na busca incrédulos e solidários com meu futuro padecimento com três dias de viagem para voltar para casa. Mas milagres existem e o que me favoreceu consistiu na eliminação da ida e volta entre a Espanha e Portugal em meu trajeto.
Militar retém passaporte e faz escolta
Mesmo assim, longas 30 horas de viagem me esperavam. Depois de um estresse na saída do aeroporto de Caracas: o acesso à fila do check-in na companhia aérea é controlado por um militar, que checou meu passaporte e perguntou minha profissão. Bastou que eu dissesse ser jornalista para que o oficial responsável pedisse que eu voltasse ao seu posto após despachar a bagagem.
Check-in feito e quando voltei a abordá-lo, ele reteve meu passaporte e o entregou para outro militar que me escoltou até a entrada do embarque. Lá esperamos a chegada de outro uniformizado que me acompanhou até o interior da área de imigração e, ao lado de alguns poucos passageiros que também não sabiam por que eram escoltados, passamos, um a um, pelo raio-x no interior de uma cabine, na qual é preciso levantar os braços para que o corpo seja analisado, depois de já termos passado pela máquina de raio-x tradicional do aeroporto.
Devolvidos os passaportes após a dupla checagem e a escolta, foi a vez de esperar a checagem do funcionário do departamento de migração, que aparentemente não acostumado com a presença de um jornalista estrangeiro, também levou meu passaporte para análise fora do guichê, durante novos longos minutos de espera.
Na sala de embarque, uma nova checagem da bagagem de mão em mais um raio-x e revista manual do corpo dos passageiros por militares — com homens e mulheres separados em duas filas para o procedimento — é feita em todos os passageiros antes de que entrem na aeronave.
Passadas todas as fases de checagem, finalmente teve início o voo, com mais de uma hora de atraso segundo “medidas excepcionais de segurança” do aeroporto venezuelano, segundo informado pelo piloto.
“Joder!”, escutei diversas vezes de funcionários espanhóis da checagem de bagagem na chegada ao aeroporto internacional de Madri, surpresos com a necessidade de ir à Espanha para voltar a Buenos Aires.
“Olha isso, ela teve que vir até aqui porque o Maduro suspendeu voos para a Venezuela!”, gritou um deles para um colega venezuelano que trabalhava no raio-x, resumindo de forma pouco precisa a situação que eu acabava de narrar.
Com um atraso de cerca de três horas do voo entre Madri e Buenos Aires, todo o trajeto da Venezuela para a Argentina durou mais de 34 horas. Uma longa jornada pessoal que me faz sair da posição de jornalista observadora que vive de contar o que escuta e o que vê, para ser a narradora em primeira pessoa que em uma situação de necessidade — a de sair rapidamente do país devido à iminente expiração do visto —, vivenciou na pele como venezuelanos estão ficando isolados devido a uma malha aérea cada vez mais enxuta.
Esse é um exemplo prático de como a crise política e sua expressão diplomática reduzem as possibilidades de chegar ou sair do país, mesmo quando mais de sete milhões de venezuelanos estão morando no exterior e precisam ou querem, de tempos em tempos, visitar sua terra natal e rever seus familiares.
Embora seja tão prejudicial para a economia do país e para o livre trânsito, a desconexão aérea venezuelana aparece como somente mais uma crise dentre tantas consequências de iniciativas intempestivas no dia a dia da população. E cada história de périplo, embora distópica, em meio a tanto caos, vira só um caso individual que nem consegue mais chamar atenção.