O Brasil se pronunciou, nesta sexta-feira (1º), chamando de “massacre” as mortes de civis enquanto tentavam pegar comida de um comboio de ajuda humanitária em Gaza, e fez duras críticas ao governo israelense de Benjamin Netanyahu.
Pelo menos 112 pessoas morreram e centenas ficaram feridas em Gaza depois que as forças de Israel abriram fogo enquanto civis palestinos esperavam por comida, de acordo com o Ministério da Saúde palestino em Gaza.
Os militares de Israel e testemunhas oculares deram relatos contraditórios dos acontecimentos no terreno.
Em comunicado divulgado nesta sexta, o Itamaraty afirmou que “trata-se de uma situação intolerável, que vai muito além da necessária apuração de responsabilidades pelos mortos e feridos de ontem”.
O governo brasileiro aponta que as aglomerações em torno do comboio de ajuda “demonstram a situação desesperadora a que está submetida a população civil da Faixa de Gaza e as dificuldades para obtenção de alimentos no território”.
Autoridades da ONU e especialistas em ajuda humanitária e assistência de saúde de diferentes organismos e entidades vêm denunciando há meses a sistemática retenção de caminhões nas fronteiras com Gaza e a situação crescente de fome, sede e desespero da população civil. Ainda assim, a inação da comunidade internacional diante dessa tragédia humanitária continua a servir como velado incentivo para que o governo Netanyahu continue a atingir civis inocentes e a ignorar regras básicas do direito humanitário internacional. Declarações cínicas e ofensivas às vítimas do incidente, feitas horas depois por alta autoridade do governo Netanyahu, devem ser a gota d’água para qualquer um que realmente acredite no valor da vida humana.
Itamaraty, em comunicado
Em crítica direta ao primeiro-ministro israelense, o Itamaraty ainda afirmou que o governo de Israel “volta a mostrar, por ações e declarações, que a ação militar em Gaza não tem qualquer limite ético ou legal”.
O Brasil cobra a comunidade internacional para “dar um basta” e evitar novas atrocidades. “A cada dia de hesitação, mais inocentes morrerão. A humanidade está falhando com os civis de Gaza. E é hora de evitar novos massacres”, acrescentou o comunicado.
Por fim, o Itamaraty expressou solidariedade ao povo palestino, relembrou as mais de 30 mil mortes em Gaza desde o início do conflito, e reiterou “a absoluta urgência de um cessar-fogo e do efetivo ingresso em Gaza de ajuda humanitária em quantidades adequadas, bem como a libertação de todos os reféns”.
Leia o comunicado completo do Itamaraty no final da matéria.
O que aconteceu em Gaza
Uma das piores tragédias ocorridas durante a guerra de Israel com o Hamas ocorreu na quinta-feira (29), quando dezenas de palestinos foram mortos tentando obter ajuda alimentar na Cidade de Gaza.
Mais de 100 pessoas morreram e mais de 700 ficaram feridas em um caso em que tropas das Forças de Defesa de Israel (IDF) usaram fogo real enquanto civis palestinos famintos e desesperados se reuniam em torno de caminhões de ajuda alimentar, de acordo com o Ministério da Saúde palestino em Gaza.
A CNN não consegue confirmar esses números de forma independente.
O caso ocorreu em um contexto de grande fome e extrema pobreza no território palestino, onde a ajuda alimentar tem sido tão rara que frequentemente provoca pânico quando chega.
Mas existem narrativas discordantes em torno da devastação que foram apresentadas por Israel e por testemunhas oculares em campo.
As mortes ocorreram em meio a cenas de caos na Rua Haroun Al Rasheed, no oeste da cidade de Gaza, onde multidões de palestinos famintos se reuniram para receber ajuda alimentar.
Um comboio de pelo menos 18 caminhões chegou por volta das 4h30 da manhã de quinta-feira, enviado por países da região, incluindo Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, segundo testemunhas oculares.
Civis cercaram os caminhões de ajuda recém-chegados na esperança de conseguir comida, e as forças israelenses logo começaram a atirar, disseram testemunhas.
Os caminhões de ajuda tentaram escapar da área, atropelando acidentalmente outros e causando mais mortes e feridos, acrescentaram testemunhas à CNN.
As ambulâncias lutaram para chegar aos necessitados porque os escombros bloqueavam o caminho, disse uma dessas testemunhas, Ahmad Abu Al Foul, à CNN.
A maioria das vítimas morreu atropeladas por caminhões de ajuda que tentavam escapar ao fogo israelense, de acordo com um jornalista local em Gaza, Khader Al Za’anoun.
Al Za’anoun, que estava no local e testemunhou o ocorrido, disse que embora houvesse grandes multidões esperando a distribuição de alimentos nos caminhões de ajuda, o caos e a confusão que levaram as pessoas a serem atropeladas pelos veículos só começaram quando os soldados israelenses abriram fogo.
“A maioria das pessoas mortas foi atropelada pelos caminhões de ajuda durante o caos e enquanto tentavam escapar dos tiros israelenses”, disse Al Za’anoun.
O que Israel alega?
Israel ofereceu relatos do caso à medida que o dia avançava.
Nos seus primeiros comentários, as Forças de Defesa de Israel (FDI) disseram que o ocorrido começou quando os palestinos tentaram saquear os caminhões.
“Esta manhã, durante a entrada de caminhões de ajuda humanitária no norte da Faixa de Gaza, os moradores de Gaza cercaram os veículos e saquearam os mantimentos entregues. Durante o incidente, dezenas de moradores de Gaza ficaram feridos como resultado de empurrões e atropelamentos”, disse a FDI à CNN.
Mais tarde na quinta-feira, um porta-voz militar israelense afirmou em um briefing que houve dois casos distintos envolvendo caminhões de ajuda humanitária em Gaza na quinta-feira.
Primeiro, ele disse que os caminhões entraram no norte de Gaza e foram atacados por multidões, e os veículos atropelaram as pessoas. Posteriormente, disse ele, um grupo de palestinos abordou as forças israelenses, que, por sua vez, abriram fogo contra eles.
“Os caminhões foram para o norte, depois houve a debandada e, depois, houve o evento contra as nossas forças. Foi assim que as coisas aconteceram esta manhã”, disse o porta-voz.
Essa cronologia contradiz diretamente os relatos de testemunhas oculares, que sugeriram que os militares israelenses abriram fogo contra as pessoas perto dos caminhões, fazendo com que os motoristas se afastassem em pânico.
Em uma coletiva de imprensa na quinta-feira, o porta-voz das FDI, Daniel Hargari, negou que tenha havido um ataque ao comboio. Ele disse que os tanques israelenses dispararam tiros de advertência para dispersar uma multidão em torno de um comboio de ajuda humanitária em Gaza, depois de ver que as pessoas estavam sendo pisoteadas.
Ele insistiu que os tanques estavam ali “para proteger o corredor humanitário” para que o comboio de ajuda pudesse chegar ao seu destino.
As FDI divulgaram um pequeno vídeo que parece mostrar um tanque dirigindo paralelo à multidão, a vários metros de distância.
“Como você pode ver neste vídeo, os tanques que estavam lá para proteger o comboio veem os moradores de Gaza sendo pisoteados e cautelosamente tentam dispersar a multidão com alguns tiros de advertência”, disse Hagari.
Quando a multidão começou a crescer e “as coisas saíram do controle”, o tanque recuou para evitar ferir os habitantes de Gaza, acrescentou.
“Acho que, como militares, eles estavam recuando com segurança, arriscando as próprias vidas, e não atirando na multidão”, disse ele.
Leia o comunicado completo do Itamaraty sobre o ocorrido
“O Governo brasileiro tomou conhecimento, com profunda consternação, dos disparos por arma de fogo, por forças israelenses, ocorrido no dia de ontem, no Norte da Faixa de Gaza, em local em que palestinos aguardavam o recebimento de ajuda humanitária.
Na ocasião, mais de 100 pessoas foram mortas e mais de 750 feridas por tiros, pisoteio ou atropelamento.
As aglomerações em torno dos caminhões que transportavam a ajuda humanitária demonstram a situação desesperadora a que está submetida a população civil da Faixa de Gaza e as dificuldades para obtenção de alimentos no território.
Trata-se de uma situação intolerável, que vai muito além da necessária apuração de responsabilidades pelos mortos e feridos de ontem.
Autoridades da ONU e especialistas em ajuda humanitária e assistência de saúde de diferentes organismos e entidades vêm denunciando há meses a sistemática retenção de caminhões nas fronteiras com Gaza e a situação crescente de fome, sede e desespero da população civil.
Ainda assim, a inação da comunidade internacional diante dessa tragédia humanitária continua a servir como velado incentivo para que o governo Netanyahu continue a atingir civis inocentes e a ignorar regras básicas do direito humanitário internacional.
Declarações cínicas e ofensivas às vítimas do incidente, feitas horas depois por alta autoridade do governo Netanyahu, devem ser a gota d’água para qualquer um que realmente acredite no valor da vida humana.
O governo Netanyahu volta a mostrar, por ações e declarações, que a ação militar em Gaza não tem qualquer limite ético ou legal.
E cabe à comunidade internacional dar um basta para, somente assim, evitar novas atrocidades. A cada dia de hesitação, mais inocentes morrerão.
A humanidade está falhando com os civis de Gaza. E é hora de evitar novos massacres.
Ao expressar sua solidariedade ao povo palestino, sobretudo aos familiares das vítimas, o Brasil reafirma seu firme repúdio a toda e qualquer ação militar contra alvos civis, sobretudo aqueles ligados à prestação de ajuda humanitária e de assistência médica.
O massacre de hoje vem se somar às mais de 30 mil mortes de civis palestinos, das quais mais de 12 mil são crianças, registradas desde o início do conflito, além dos mais de 1,7 milhão de palestinos vítimas de deslocamento forçado.
O Brasil reitera a absoluta urgência de um cessar-fogo e do efetivo ingresso em Gaza de ajuda humanitária em quantidades adequadas, bem como a libertação de todos os reféns.
O Governo brasileiro recorda a obrigatoriedade da implementação das medidas cautelares emitidas pela Corte Internacional de Justiça, em 26 de janeiro corrente, que demandam que Israel tome todas as medidas ao seu alcance para impedir a prática de todos os atos considerados como genocídio, de acordo com o Artigo II da Convenção para a Prevenção e a Repressão e Punição do Crime de Genocídio.”