Em meio ao crescimento das bets nos últimos anos e enquanto o governo finaliza a regulamentação das casas de apostas no país, a procura por atendimento para tratar o vício em jogos online quase dobrou neste ano. Segundo dados do Ministério da Saúde, a rede pública realizou 2.406 atendimentos só até julho. Em todo o ano passado, tinham sido 1.290 atendimentos. O número deste ano ainda é 186% maior do que a procura em 2022.
Acontece que esses números devem ser ainda maiores. Isso porque, segundo especialistas, ainda há uma grande subnotificação desses casos. Um estudo recente sobre o impacto dos jogos de azar no mundo, publicado pela revista The Lancet, aponta que mais de 8% da população mundial já apresenta alguns sinais de vício e 1,4% está doente. Proporcionalmente, isso significaria três milhões de brasileiros adoecidos por causa do vício em apostas online. O número pode ser ainda maior porque o Brasil agora figura no topo do ranking de países com mais acessos a plataformas de apostas.
Rodrigo Machado, psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo, compõe o grupo criado para tratar transtornos do impulso e tem percebido uma procura cada vez maior. Ele diz que é preciso ampliar a rede de atendimento na saúde pública. Isso porque, apesar de ser um centro especializado que deveria receber casos mais graves, o hospital das clínicas tem sido porta de entrada para muitos pacientes. A lista de espera por lá já chegou a oito meses. Rodrigo diz que recebe pessoas de vários estados do país. E percebe que a grande maioria é jovem, inclusive adolescente. Muitos já deprimidos.
“Muitas vezes adolescentes chegando, porque usaram cartão de crédito dos pais para apostar, um perfil totalmente diferente do que a gente via no passado, de pessoas que já tava em meia-idade. Percepção de perda controle na prática, planejava fazer só uma fezinha, uma aposta ali, perdi, perdi tudo que eu tinha na semana e percepção de prejuízos funcionais, ou seja, minha vida precisa estar com pilares fundamentais atravancados, atrapalhados. A consequência direta mais óbvia são dívidas, mas eu posso ter minha queda no rendimento do trabalho, laços familiares que são estremecidos e abalados, vínculos sociais, vínculos acadêmicos”
João Rosendo conseguiu largar o vício, mas perdeu muito dinheiro antes disso. Em poucos meses, gastou a reserva que tinha e se endividou com o uso do cartão de crédito – perdeu 20 mil reais. Precisou vender o carro pra pagar metade da dívida.
“Eu acabei conhecendo a época dos casinos. Nessa época, eu já não sabia mais o que era coisa real com coisa irreal, o que eu queria era tá jogando. Eu já não sabia mais o que eu tava fazendo da minha vida. Porque? Eu tava tomando esses prejuízos excessivos, eu já não tinha mais vida social, meu serviço já não rendia a mesma coisa. Acordava e dormia pensando em aposta. E quando começou a vir cobranças, quando eu via a fatura de cartão enorme, eu não sabia mais o que fazer. E eu comecei a não dormir direito de noite pensando naquilo, só que não conseguindo largar as casas de aposta”
Desde que as discussões em torno da regulamentação dos jogos começaram, a procura por tratamento no hospital das clínicas, em São Paulo, aumentou quatro vezes. Por isso, especialistas defendem regras mais duras para combater o vício. Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que tem adotado medidas de prevenção, como a qualificação dos profissionais que atendem na rede primária. A pasta diz que, desde 2023, ampliou a rede de assistência em saúde mental, responsável por um a cada oito atendimentos feitos nas unidades básicas de saúde.