Autor de cinco livros, o romancista colombiano Juan Cárdenas, de 46 anos, não esconde a admiração por Machado de Assis, autor de livros que ele já traduziu do português para o espanhol, assim como obras de Guimarães Rosa. Atração da 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Cárdenas era inédito no Brasil até lançar o romance ‘O diabo das províncias’, publicado pela editora DBA Literatura neste ano. A história aborda a vida de um biólogo que volta à cidade natal, na Colômbia, depois de 15 anos. Lá, o personagem começa a trabalhar em um internato feminino e se depara com traumas passados.
O autor conversou com a reportagem da CBN sobre o livro e a trajetória como escritor e tradutor.
Por ser tradutor de Machado de Assis e Guimarães Rosa, como você se sente em ter ‘O diabo das províncias’ publicado no Brasil?
É ridículo, mas vou usar o clichê: para mim, é um sonho transformado em realidade. É uma grande alegria para mim ver o meu livro traduzido em português, publicado no Brasil, que tem uma literatura e uma língua que eu adoro. Para mim, é especial estar aqui.
Qual foi a inspiração para essa obra?
Ela nasceu de uma experiência que poderíamos chamar de autobiográfica, porque eu voltei para a Colômbia depois de passar 15 anos fora do país. Então, para mim, de certa maneira, escrever livro foi uma maneira de tentar compreender o que significa voltar para América Latina depois de tanto tempo fora. Eu estava tentando ver sentido na realidade, com os fenômenos sociais e políticos e com traumas em lugar tão difícil, como o lugar onde nasci. Eu sou da Colômbia, que tem uma herança terrível em termos de escravidão, genocídios indígenas e uma luta muito forte pela terra por parte dos camponeses. Eu demorei uns anos para conseguir encontrar a forma de contar essa história. Nela, um biólogo retorna à pequena cidade onde cresceu e começa a encontrar o trauma, o terror, as coisas mais terríveis do legado histórico, transformadas pelo presente, pelas forças do capitalismo presente. Para mim, era muito importante refletir sobre a forma com a qual, historicamente, se representou aquele trauma; como se tentou romantizá-lo com narrativa e raciocínio oligárquicos, com o imaginário da fazenda, da aculturação senhorial e tudo mais. Era importante também dar conta de formas de representação históricas e, ao mesmo tempo, fazer uma revolução interna para criar outra forma de representar aquilo.
Em um trecho do livro, o biólogo precisa fazer o parto de uma das jovens do internato. Mesmo em momentos tensos da história, você usa uma linguagem própria, rica em detalhes. Como você desenvolveu essa forma de escrever ao longo do tempo?
Eu acho que tem a ver com a tradução, que é a verdadeira ‘cozinha’ da minha escrita. Foi assim que eu desenvolvi essa forma de escrever, mas eu não sou tão consciente assim do que eu faço, viu? Eu tenho medo de estragar o mistério da minha escrita. Então, nem tenta pensar muito nisso.
Nesse mesmo trecho do livro, antes do trabalho de parto, o biólogo está falando, na aula, sobre emergência climática. Para você, qual a importância desse tema e por que colocou no seu livro?
Eu nunca penso em temas. Eu acho que é essa é uma preocupação mais do jornalismo do que da literatura. Os jornalistas, como parte do ofício, estão sempre preocupados com os temas, mas, nos escritos, não pensamos diretamente assim: ‘vou fazer isso sobre um tema que está aí rolando’. Para mim, tem mais a ver com a observação direta dos fenômenos e como a natureza se combina com as forças sociais. Você chega à conclusão de que a mudança climática é uma realidade, que está acontecendo e mudando tudo. Dá para sentir diretamente no corpo. Foi talvez o que tentei representar, e não ‘abordar um tema’.
Vamos falar agora do ‘autor’ Juan Cárdenas. Qual é a sua história com a escrita?
Eu tenho um mito, uma fantasia, de que, quando era criança, eu gostava mais de escrever do que de ler. Eu tinha uma máquina de escrever muito velha e fazia ‘continhos’. Eu gosto da ideia da produção, do trabalho material com a escrita. Por isso eu falo da máquina de escrever, porque essa experiência foi muito importante para mim; a do dedo na tecla, fazendo buraquinho e mancha no papel branco. Aquela experiência elemental foi muito importante. Sempre gosto de comparar com a relação do pintor com o trabalho dele, inclusive meios eletrônicos. Uma grande referência minha, o escritor argentino Sergio Chejfec, que morreu em 2022, falava que as máquinas também podem ter esse papel nos dias de hoje.
E o Juan ‘tradutor’?
Fiz a minha primeira tradução do inglês em 2002, mas foi uma coisa muito amadora, porque eu nunca estudei nenhuma língua. Eu nunca estudei tradução formalmente, em uma universidade; a minha relação com as línguas tem muito a ver com a rua e as experiências que eu tenho e tive na minha vida. Por exemplo, eu estudei francês, mas eu nunca tive uma relação cotidiana com uma língua francesa. Então, eu nunca faço tradução do francês, mas sim, das línguas com as quais tenho familiaridade, resultado das conexões sensíveis e das relações pessoais com os seres humanos. Então, para mim, a tradução é quase como dar continuidade a uma conversa cotidiana, trazendo para o espanhol os sons e os ritmos das outras línguas, pegando na rua, e não de um livro.
O que Machado de Assis representa para você?
É um dos meus heróis. Eu adoro Machado de Assis. Foi um ‘Borges’ antes do Jorge Luis Borges [escritor argentino]. É quem pega a herança da literatura cervantina do Século de Ouro Espanhol e moderniza a ideia do Quixote, transformando para a literatura do Brasil. Tivemos que esperar até século XX para Borges aparecer e fazer o mesmo com [Miguel de] Cervantes. No Brasil, Machado de Assis já tinha feito no século XIX.