Conhecida internacionalmente pelo discurso de abertura da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), no Reino Unido, em 2021, a ativista indígena Txai Suruí, de 27 anos, entrou, em 2024, em um novo terreno: o da literatura. Ela lançou o livro ‘Canção do amor’, publicado pela Elo Editora, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), uma das maiores do gênero no país.
Txai conversou com a reportagem da CBN sobre a obra e defendeu que, em um contexto de mudanças climáticas, a literatura é um dos meios para se lutar pelos direitos dos povos indígenas.
Qual foi a inspiração para o seu primeiro livro, ‘Canção do amor’?
Eu fiz esse poema para o meu amor, meu namorado, Karai Djekupe, uma liderança guarani. É um poema exatamente sobre amor e revolução, porque eu sou uma mulher também apaixonada. Eu acho que, no momento em que a gente está vivendo, a gente tem que tocar as pessoas. Esse reflorestar das mentes e dos corações não vai passar só por informações como da ciência. Pelo que eu estou vendo, as pessoas não estão entendendo quando dialogam com elas dessa forma. A gente tem que dialogar no sentir, no tocar, e eu vejo que a arte tem esse poder. Esse poema foi feito em um momento de reflexão, de paixão. Eu falo do ‘corpo território’, que traz essa conexão mesmo como indígenas, de entender que, independentemente de eu estar lá no meu território ou não, eu carrego a minha cultura viva para transmiti-la aqui na Flip. Quando falo no livro sobre os animais, era o que estávamos vendo na aldeia naquele momento; o macaco apareceu para nós, assim como o tamanduá. No caso da árvore barriguda, na minha cultura, a gente acredita que as mulheres vieram dela. Isso mostra como nós somos ‘seres natureza’. Ela faz parte da nossa família. Apesar das diferentes culturas, vivemos todos sobre esse mesmo planeta. Nós [indígenas] também amamos, temos alegria e queremos trazer essa outra visão sobre a beleza das nossas culturas. A gente compartilha a história assim como aprende na oralidade, do que ouvimos dos nossos pais e avós. Tudo também como uma poesia, através de canções. O nome do livro é ‘Canção do amor’ porque o meu povo é cantor. Cantar uma canção é contar uma história.
Txai Suruí — Foto: Divulgação
Você é estudante de Direito e ligada a entidades ligadas à defesa dos direitos dos povos indígenas, como o Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e a ONG Kanindé. Para você, qual o papel da literatura nesse contexto?
A literatura é importantíssima para a educação e o aprendizado. O meu livro é infantil, mas também para todas as idades, para todos conhecerem e entenderem um pouco da nossa cultura. Até hoje, a história é contada no Brasil pela narrativa colonial, do português que chegou aqui. A verdadeira história do país não vem sendo contada, e a literatura passa por isso. Quem a gente estuda na escola? Quais são os autores que a gente lê? Quem são essas pessoas? Durante muito tempo, a escrita e a literatura estavam na mão deles; apesar de a história vir de nós, muitos usaram dela para escrever. Eu vejo que é um ato político, educacional, poder não só ensinar e mostrar nossa cultura para as crianças e jovens, mas para todo mundo, recontando a história do nosso país, reconhecendo o que vivemos e criar uma nova e verdadeira história.
Você foi convidada para participar de uma mesa extra na Flip sobre queimadas. Qual a importância de se discutir esse tema urgente em uma feira literária?
Os livros são uma reflexão do próprio mundo. É muito importante a gente trazer esses temas emergentes para cá, afinal, geralmente aqueles que leem são as pessoas intelectualizadas. Então, elas têm que falar sobre isso. As mudanças climáticas não são um tema futuro, mas o nosso agora. E vão impactar primeiro as populações vulnerabilizadas, como a gente já está vendo. Comunidades ribeirinhas em Rondônia estão isoladas por causa da seca do rio, sem acesso a comida e água. Tivemos as enchentes, as queimadas… Porto Velho passou dois meses sobre fumaça, o que fez as pessoas adoecerem. Então, é um tema que atravessa a vida de todos e todos os lugares. A gente precisa fazer essa reconexão com a natureza. O conteúdo que está aqui é o que vai dizer o que as pessoas vão conversar, para que a gente saiba o que precisa fazer para cobrar, para que a gente entenda qual o nosso papel, já que todos somos impactados. Eu acredito que a arte, a poesia em si, é uma forma de tocar as pessoas sobre esse tema.
No seu discurso na COP26, em 2021, você foi enfática ao descrever os impactos do aquecimento global sobre comunidades indígenas. Hoje, o que você acrescentaria nesse discurso?
Eu participo de um conselho com o Carlos Nobre [climatologista] e ele contou que está chocado, que não imaginava que os efeitos [das mudanças climáticas] aconteceriam com a rapidez e a gravidade de agora. De quando eu fiz o discurso para cá, pouca coisa mudou, principalmente nas ações que aqueles que dizem nos representar deveriam estar tomando para uma mudança de caminho que a gente tem que seguir, se a gente quiser ter um futuro ainda. Ainda há muitas pessoas que negam o que está acontecendo, sendo que a gente está vivendo isso agora. Mais do que nunca, as próximas gerações, principalmente, vão sofrer as consequências das mudanças climáticas, como nossos pais e avós nunca sentiram. isso, a gente continua falando de exploração do petróleo na Amazônia, a gente ainda não entendeu a importância dos territórios indígenas e quilombolas como principal solução que o nosso país pode tomar no combate às emergências climáticas. No Brasil, diferentemente de outros países, a agropecuária é o maior causador de emissões de gases de efeito estufa, na criação de gado. A melhor solução é exatamente proteger os territórios indígenas e quilombolas e as unidades de conservação, porque, lá, as florestas estão sendo protegidas. É dentro dos territórios indígenas que tem floresta em pé, ou seja, protegemos a vida. Como os políticos continuam atacando os nossos direitos? Estão mais preocupados com interesses próprios, a ganância de enriquecer, mesmo já sendo ricos. Eles fortalecem a narrativa de exploração, de que nós somos um impasse para o progresso, mas progresso é continuar vivo, ter um ar respirável, ter água limpa para beber, além de as mulheres poderem andar livres. Progresso é igualdade e floresta em pé.
Por que as pessoas devem procurar o seu livro?
Eu convido todos a lerem esse poema, porque escrevi com muito amor e acredito que é isso que temos que fortalecer hoje: o tocar no coração das pessoas, além de fortalecer o sentimento, o amor, a alegria, para poder começar a olhar para o outro como ser humano. A gente está esquecendo de amar. Vemos pessoas na rua, passando fome, pedindo dinheiro; a violência contra os povos indígenas; um país desigual… mas parece que a gente não está vendo, como se essas pessoas fossem invisíveis. A gente perdeu o amor pela humanidade, pela floresta. A arte e a poesia, para mim, são como uma semente do reflorestar das mentes e dos corações que o movimento indígena, principalmente mulheres, tanto fala. É necessário que a gente ensine, principalmente às nossas crianças, o fortalecimento da conexão com a natureza, já que somos parte dela. Foi ensinado que, quando se pisa na terra, a gente está se sujando, mas, na verdade, estamos pisando na vida. Se a gente passou dois meses respirando fumaça, é porque o pertencimento do próprio lugar que a gente está se perdeu. O livro demonstra a necessidade de um esperançar das pessoas, como Paulo Freire fala. Isso é mais que necessário.