O mundo fervilhava politicamente e culturalmente em 1970. Por um lado, o auge da Guerra Fria fez com que a América Latina virasse palco de diversas ditaduras, com movimentos revolucionários contrários também. Por outro, era o período da experimentação pela juventude, que vai da contracultura até a Tropicália, no Brasil, especificamente.
E um dos símbolos desse movimento de contracultura e hippie foi a cantora americana de blues, Janis Joplin. Naquele ano, a artista, aos seus 27 anos, vivia um momento estrelado depois de participar de dois discos de extremo sucesso no meio underground dos Estados Unidos: “Cheap Thrills”, com a Big Brother and the Holding Company, e “I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!”, com a Kosmic Blues Band.
Na vida pessoal, entretanto, as coisas não andavam tão fáceis. Sozinha e viciada em heroína, Joplin decidiu viajar até o Brasil do nada. Mais especificamente para o Rio de Janeiro.
A passagem de sete dias é tema do documentário “Janis – Amores de Carnaval, Memórias de Ricky Ferreira e convidados”, dirigido por Ana Isabel Cunha. O longa faz sua estreia mundial no Festival do Rio 2024.
O que é verdade e o que não é?
A vinda de Joplin é alvo de muita confusão, com histórias desencontradas e até mesmo mistérios. Uma delas, por exemplo, é o motivo da artista ter escolhido o Brasil. Alguns dizem que foi para fugir da droga na qual era viciada; outros porque assistiu ao filme “Orfeu Negro”, de 1959, e queria ver como era o Carnaval carioca.
O longa não se interessa em buscar verdades ou desmistificar mitos. A ideia da narrativa é justamente dar palco para aqueles que conheceram a artista no Brasil e ouvir seus relatos.
E o ponto de partida foram os relatos do fotógrafo Ricky Ferreira, citado no título da obra, que hospedou Janis logo após ela ter sido expulsa do Copacabana Palace por, supostamente (outra história nunca comprovada), fazer topless.
Ele a encontra na Praia de Copacabana, na Zona Sul do Rio, junto do Rei Momo e percebe quem era. Começa a fotografar e, após uma conversa, descobre que realmente a cantora não tinha mais nenhum lugar para ficar, oferecendo sua casa, no mesmo bairro.
“Foram muitos encontros com o Ricky e a cada encontro um fato novo surgia. Separamos as fotos e as histórias por locais: Copacabana, Leblon, Av. Presidente Vargas, Teatro Municipal, Praia da Macumba e Pedra do Sapo. As fotos serviram de arco narrativo do documentário”, conta a Ana Isabel.
Segundo ela, a base do filme são justamente as 31 fotos tiradas por Ricky, o maior acervo de fotografias de Joplin em terras brasileiras. Cada vez que uma delas aparece, novas histórias surgem:
“Como foi durante um período bastante conturbado da nossa história – ditadura militar e a Copa de 70 – recorremos também ao vasto acervo da biblioteca nacional para contextualizar a época. Que Rio de Janeiro durante o Carnaval em 1970? A cidade e o momento histórico também são personagens do filme”.
Os entrevistados passam por Baby do Brasil, Alcione, Walter Casagrande, a astróloga Leiloca, entre outros.
Janis Joplin durante o Carnaval do Rio. — Foto: Arquivo Nacional
O documentário retrata Janis Joplin quase como um ser etéreo e impossível de ser comandada, mas comandante de tudo. Há um determinado momento que o próprio Ricky conta que nunca a viu ela tirar um dinheiro da carteira, porém nunca reclamou de estar passando fome, por exemplo.
Da mesma forma, ela também aparece do nada nos lugares, sem nem mesmo os entrevistados saberem como ela parou por lá. Por exemplo, no desfile das escolas de samba do Rio na Avenida Presidente Vargas. Quem a levou? Ela tinha sido convidada? Ninguém sabe bem.
“Queríamos mostrar cada detalhe através do olhar e recortes destas pessoas. Foram horas de entrevistas. Foi muito interessante todo o processo não só para nós, mas principalmente para todos que participaram e lembravam de detalhes da época. Uma viagem no tempo com boas recordações”, comenta o produtor do longa Marcelo Braga.
“Show único” no Brasil
A cantora nunca chegou a fazer uma apresentação por aqui. Até mesmo porque, logo após ter saído do Rio para a Bahia (outro fato que ocorre sem muita explicação) e voltado para os Estados Unidos, Janis Joplin morreu, em outubro daquele mesmo ano. Mas alguns tiveram a chance de ouvi-lá ao vivo na Casa Copa Bacana – segundo entrevistados, um local, na época, com marinheiros e prostitutas.
Em um dos dias, Ricky Ferreira a leva até o local. Ela, então, é reconhecida pelo cantor Serguei, que estava junto de Alcione naquele mesmo dia. Ele vai até o palco, onde uma banda de música ao vivo se apresentava, e anuncia a artista. Após aplausos tímidos (já que ela não era conhecida por aquele público) houve um encantamento imediato a todos que ouviram sua voz. No documentário, o fotógrafo diz que, após ela cantar algumas músicas, os presentes passaram a pagar bebida para a mesa deles.
Local em que Janis Joplin cantou na Casa Copa Bacana. — Foto: Reprodução
A Dama do Samba é uma das que mais se diz impressionada com a voz de Joplin, dizendo que, apesar de ser uma mulher branca, tinha uma voz e entonação de uma cantora negra.
“Cada um dos entrevistados trouxe uma Janis que ele conheceu e admirou, o que nos ajudou a ir construindo essa Janis que passou como um cometa por aqui”, finaliza a cineasta.