O parlamento do Reino Unido voltou ao trabalho nesta quarta-feira (17) após ser aberto pelo Rei Charles III em uma cerimônia cheia de simbolismos e tradições que tão bem definem os britânicos. O monarca discursou na chamada Câmara dos Lordes em uma sessão especial que contou com a participação dos membros da Câmara dos Comuns, políticos diretamente eleitos pelo povo.
Assim como a troca de primeiro-ministro, a abertura do parlamento britânico mostra bem a separação entre as esferas de poder “Estado” e “governo”. O discurso do Rei é político: expõe a agenda do governo vigente para o ano legislativo que se inicia, mas não é escrito pelo monarca. Com papel cerimonial, o chefe de Estado apenas lê um pronunciamento escrito pelo governo e há uma preocupação de que o tom da fala seja neutro, como o Rei deve permanecer diante de questões políticas.
A abertura do parlamento acontece quase duas semanas após a eleição que colocou o partido trabalhista de volta ao poder depois de 14 anos. É um evento que começa com um desfile de carruagem com o Rei e a Rainha consorte saindo do Palácio de Buckingham até o Palácio de Westminster, sede do legislativo.
O monarca normalmente usa a chamada Coroa Imperial de Estado, que compõe o conjunto de relíquias conhecidas como as “joias da Coroa”. Ao chegar no parlamento, o Rei é recebido pelos lordes que formam uma das casas do parlamento e senta em um trono.
No início da sessão especial, os membros do parlamento que estão na Câmara dos Comuns são convocados a assistir o discurso do Rei na Câmara dos Lordes, que fica logo ao lado. É nesse momento que é colocada em prática uma das tradições mais marcantes de toda a cerimônia.
Uma autoridade da Câmara dos Lordes, conhecida como “Black Rod” (bastão negro, em tradução livre) atravessa o corredor em direção à Câmara dos Comuns. Antes que ela chegue à sala ao lado, a porta é batida com força, quase no rosto desta autoridade. Essa é uma prática centenária e é adotada para simbolizar a “independência da Câmara dos Comuns em relação à monarquia”, de acordo com o próprio parlamento britânico.
Após a porta ser fechada, “Black Rod” bate com um bastão preto três vezes e recebe permissão para entrar. A autoridade, então, convoca os membros do parlamento a seguirem para sala ao lado, onde todos acompanham o discurso do Rei. O primeiro-ministro e o líder da oposição normalmente caminham juntos até a outra câmara.
Desde 2017, a posição de “Black Rod” é ocupada por Sarah Clarke, a primeira mulher a ter esse cargo em 650 anos. Além desta função cerimonial, ela é responsável por tarefas administrativas durante as sessões do parlamento ao longo do ano. O cargo existe também nos parlamentos do Canadá, Austrália e Nova Zelândia, países que até hoje têm o monarca britânico como chefe de Estado.
Busca por bombas e “parlamentar refém”
Outras duas tradições que acontecem na abertura do parlamento foram adotadas durante tempos de turbulência e animosidade entre monarquia e parlamento e são mantidas até o dia de hoje.
Na véspera do discurso do Rei, acontece uma busca cerimonial por explosivos nos porões do palácio de Westminster. Essa tradição, que ocorre longe dos olhos do público, “é um lembrete da Conspiração da Pólvora de novembro de 1605”, de acordo com o parlamento britânico.
O evento histórico em questão foi uma tentativa de assassinar o Rei James I durante a abertura do parlamento. O plano havia sido liderado por católicos devotos que queriam tirar o monarca protestante do poder. Na época, centenas de explosivos haviam sido colocados em um porão logo abaixo da Câmara.
Uma carta anônima enviada ao palácio denunciou o plano e uma varredura acabou encontrando os explosivos. Os responsáveis pelo ataque foram presos e executados. Até hoje, a data de 5 de novembro é celebrada no Reino Unido com o nome de “Bonfire Night”, noite da fogueira, em tradução livre.
Outra tradição marcante da abertura do ano legislativo envolve uma espécie de sequestro. O próprio parlamento britânico explica: “Um membro da Câmara dos Comuns é cerimonialmente mantido refém no Palácio de Buckingham, enquanto o monarca comparece ao parlamento, para garantir o retorno seguro do Rei”.
A tradição data dos tempos de um antecessor de Charles III, Charles I, que tinha uma relação turbulenta com o parlamento e que acabou degolado em 1649 após uma guerra civil.