O caso de estupro coletivo de uma brasileira por oito homens na Índia chocou o Brasil. A influenciadora Fernanda Santos foi às redes sociais denunciar o crime, que aconteceu enquanto viajava com seu marido pelo continente asiático, e relata que pensou que fosse morrer durante a agressão.
O território indiano é considerado há anos um dos mais perigosos do mundo para as mulheres: o estupro é um dos crimes mais comuns. Em 2022, foram registrados 31.516 casos em todo o país — o equivalente a mais de 86 por dia ou quase um estupro a cada 17 minutos, de acordo com dados do Escritório Nacional de Registros Criminais, que publica o relatório “Crime in India” (Crime na Índia) desde 1953.
Deste total, 2.118 casos são de estupro coletivo. A maior parte das vítimas tem entre 18 e 30 anos (65,9%), mas também há casos de meninas menores de seis anos (0,3%) e de mulheres acima dos 60 anos (0,3%).
Além do estupro, outros casos como tráfico para trabalho doméstico, trabalho forçado, casamento forçado e escravidão sexual também são preocupantes no país.
Apesar de o Brasil também ser um país com dados alarmantes de violência sexual contra mulheres, os estupros coletivos são mais comuns na Índia, e são notificados casos com crueldade chocante, como o da estudante Jyoti Singh, que morreu aos 23 anos após um estupro coletivo e agressão com uma haste metálica, que foi inserida nela até que seu intestino foi puxado para fora. Este caso, que ocorreu em 2012, fez com que o Parlamento indiano criasse punições mais severas para crimes como esse, como a pena de morte.
A cientista social e pesquisadora Suzane Frutuoso, membro do Nepur, Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanos do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, onde é também doutoranda e estuda como direitos e conquistas das mulheres tiveram retrocessos com a pandemia de Covid-19, fala sobre o assunto. Em entrevista a Marcella Lourenzetto no Revista CBN, ela analisa as particularidades da Índia, traz dados e fala sobre a a atuação de luta das mulheres indianas por seus direitos. Ouça a entrevista completa e confira os destaques abaixo:
‘Um dos instrumentos para limitar a mulher é a agressão sexual’
Suzane Frutuoso explica que a cultura da violência é uma característica global: ‘somos uma sociedade violenta, as nações foram construídas em cima de dominação. E quando a gente fala de dominação, a gente está falando de subjugar alguém. E, entre os indivíduos, os sujeitos que são subjugados, a gente está falando da mulher.’
‘Apesar de todos os nossos avanços — a gente teve agora recentemente uma lei de igualdade salarial aqui no Brasil para mulheres, a gente teve uma lei recente em que a mulher não precisa mais da permissão do homem para fazer laqueadura, temos um dos melhores instrumentos jurídicos no mundo, que é a Lei Maria da Penha, para a defesa das mulheres –, como um paradoxo, a gente tem os casos de estupro e de feminicídio contra as mulheres aumentando aqui no Brasil. E não só no Brasil, mas também no mundo.
Quando se vê o avanço da mulher, ainda há um incômodo. E o que eu faço para parar esse avanço? Eu vou dar um jeito de limitá-la. E como é que eu faço para limitá-la? Um dos instrumentos é justamente a violência sexual, o que pode ser mais agressivo, mais doloroso do ponto de vista físico, que machuca, fere realmente a mulher, mas do ponto de vista emocional, é uma ruptura emocional muito grande para a vida inteira.’
Quais as particularidades da violência contra a mulher na Índia?
A pesquisadora explica que questões como tradição, religião, construção da estrutura governamental, podem explicar essa cultura do estupro no país e destaca as desigualdades entre as mulheres dentro do sistema de castas.
‘É verdade que lá os estupros coletivos acontecem com mais frequência de uma maneira muito brutal, mas no Brasil a gente também tem estupros coletivos, nos Estados Unidos, na Europa… Infelizmente, acontece em todos os lugares. Mas olhando especificamente para a Índia, eu acho que tem um fator importante ali, que é quem são as mulheres que são atacadas.
A gente sabe que a Índia é dividida por sistemas de castas que já não são tão fortes quanto no passado, mas que ainda existem. Em geral, as mulheres Dalits, que são as que estariam na base dessa pirâmide de castas da Índia, as mulheres mais pobres, são as que mais sofrem esses tipos de violência.
Muitas vezes elas nem levam adiante essa queixa por causa da vergonha, do estigma que isso pode causar. Então a gente tem uma questão importante, que é essa divisão de classe, essa coisa hierárquica dentro da Índia, com certeza, e ao mesmo tempo, esse olhar novamente de uma mulher que dentro de um sistema é considerada um nada, que é a mulher Dalit. Se acontecer com uma mulher da alta sociedade indiana, haverá punição.
Tem uma cultura mais de obediências, digamos assim, a partir das hierarquias, que no Brasil também existem, mas que aqui eu acho que a gente tem um pouco mais de flexibilidade nesse assunto. A gente tem classe social, mas não um sistema de castas.’
Mulheres não deveriam viajar à Índia?
Com a repercussão do caso da influenciadora brasileira que sofreu a agressão na Índia, muitos internautas reagiram desencorajando viagens ao país e fazendo comentários xenofóbicos. A professora ressalta que o problema não é a Índia, e sim a cultura machista que é global.
‘Não tem lugar seguro. Acho que já tem tanta coisa fazendo a gente retroceder, e, se deixar, a gente retrocede ainda mais. É claro que você precisa fazer uma viagem tomando todos os cuidados, se informando, mas não deixar de viver, porque é exatamente isso que muitos querem, que as mulheres deixem de viver. A gente quer ser livre e quer viver de uma maneira segura. Eu acho que o caminho é a gente batalhar por políticas públicas que tornem o espaço urbano mais seguro, que permitam que a mobilidade da mulher não seja limitada por uma questão de segurança em qualquer país.’